O QUE É TRABALHO CRIATIVO?

O QUE É TRABALHO CRIATIVO?

De Hermano Roberto Thiry-Cherques

 

Como toda noção nova, ou que parece nova, a ideia de “economia criativa” abriu caminhos, despertou desconfianças, oxigenou a reflexão, suscitou palermices, gerou dúvidas.

A noção derivada de “trabalho criativo” replica estes desdobramentos. O que se segue é uma contribuição no sentido de elucidar o que viria a ser o conteúdo, o referente desta expressão.

O problema da criatividade remonta aos primórdios da filosofia. Platão dividiu as artes produtivas entre divinas e humanas. As artes divinas são criativas e miméticas, as artes humanas unicamente miméticas. Nada produzem, só reproduzem. No Timeu (29 e) expôs a criação como uma emanação a partir de um princípio pré-existente.

Aristóteles concebeu um céu natural (De Caelo), nele colocando um elemento primário, o Motor Imóvel, causador do movimento celeste (Metafísica) o que tornou o céu vivo e instituiu um Princípio (Dales; 1980; 532). O suposto deus unívoco dos gregos, como todos os deuses egípcios, gregos e romanos era demiurgo. A sua atividade era a poiesis (a obra, a produção), não a criação.

O monoteísmo judaico pensou o Universo como criado pela poder da voz de Deus. Mas os hebreus não professavam a criação ex-nihilo, já que na Torá o caos antecede ao ato da criação. Embora a tradição judaica fale na criação (Genesis I, 1. 1:2; Eclesiastes XVIII, 1), trata-se de uma criação a partir de alguma coisa, do chaos, literalmente da confusão. Eloin, Adonai, Jeová ou como quer que nos refiramos ao Deus único e inominável hebraico é, conceitualmente, também ele, um demiurgo.

A creatio ex-nihilo é uma ideia exclusiva dos cristãos (Romanos 4:17; Hebreus, 11:3), que pretendiam, como seguem pretendendo, que, se Deus criou tudo o que existe, não poderia haver um algo anterior a Ele, mas só um inconcebível Nada. O vazio anterior à criação foi aventado pelos gregos e pelos romanos que o rejeitaram por contra intuitivo e contrafático. De modo que, afora a suposta faculdade até hoje só atribuída ao Incriado Deus do cristianismo, a replicação do ideal abstrato, a Criação (do latim, causativo de cresco, brotar) refere não propriamente a uma geração a partir do nada, mas a um engendramento, a uma poiesis.

De novo aqui é preciso uma diferenciação entre o ato de reproduzir algo, o ato da produção e o ato gerador. Aristóteles (Et. Nic. I, 1094ª) distingue entre os objetos que têm como fim (telos) um produto, seja material ou imaterial (a saúde é o telos da medicina) e os objetos que tem como fim a atividade em si mesma, entre poiesis e praxis, produção e ação. Na Metafísica (1050ª) refina o conceito. Dá ergon como “estar em trabalho”, em funcionamento, em processo (en-energeia) para distinguir o telos da energeia do telos da en-telecheia (estar em realização). Na poiesis a energeiaestá na coisa gerada, enquanto na práxis a energeia está naquele que produz. O trabalho “poético” é aquele referido à coisa gerada. É o novo a partir do existente, o inventado, seja ele tangível ou intangível.

Temos assim que desde a Antiguidade latina o vocábulo “criativo” aplicado à economia, às organizações, ao trabalho, ou às pessoas é equívoco. O termo correto seria “inventivo” (do latiminvent, particípio passado de invenīre, dar com, achar). Mesmo no cristianismo, os anjos e os mortais não procedem a um criar, mas a um inventar, a um encontrar, como se encontra um item no inventá-rio. Nem Leonardo da Vinci foi um criador, mas um descobridor, como sustenta Paul Valery que abraça a postulação do matemático Jules Poincaré de que a invenção é um descobrimento (Steiner 2012; 1227).

Além do equívoco terminológico, a expressão “trabalho criativo” comporta uma ambiguidade de referência. Toma a parte pelo todo (falácia de composição). Não existe uma tarefa, uma profissão, um campo em que o trabalho não possa ser inventivo. O designer industrial não exerce uma função menos criativa do que o escultor. O burocrata que aperfeiçoa um processo administrativo exerce mais criatividade do que o roteirista de cinema que sequencia chavões, como o da carroça derrubada na correria, a câmara focada nos pés do assassino que se aproxima, etc.

A criatividade é uma parcela de qualquer trabalho e não um atributo essencial de uma categoria específica de trabalho. O que há é uma variação de escala e de relevância. A fantasia coral de Beethoven, primeiro a unir uma peça para piano a um canto, seria o pináculo do trabalho criativo.  A invenção do sutiã por uma costureirinha no século XIX teria menos relevância e mérito. Ou talvez não para as mulheres da época, insanamente comprimidas nos espartilhos.

O termo “trabalho criativo” é, portanto, escalar. Conota o quantum de trabalho é referido ao esforço intelectual de geração de uma ideia (conceito), de um bem (artístico ou científico, intelectual ou material) ou de um serviço antes inexistentes, isto é, o grau em que uma categoria de trabalho implica na transformação de potência em ato. O trabalho será tanto mais criativo (inventivo) quanto mais atualizar um potencial.

 

Fonte Hermano Projetos

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